segunda-feira, 2 de julho de 2012

Espanha Para Contar Aos Netos

Digna das reverências de todos os amantes do futebol bem jogado, a Espanha conquistou o bicampeonato europeu consecutivo (o terceiro na história) após uma goleada incontestável de 4a0 pra cima da Itália. Os espanhóis foram tão superiores aos italianos que era difícil imaginar que dividiam o gramado no estádio olímpico de Kiev as duas últimas seleções campeãs mundiais. La Roja fez a Squadra Azzurra parecer time pequeno de modo similar àquilo que foi visto em dezembro, entre Barcelona e Santos, na final do Mundial de Clubes 2011. Duas ocasiões onde o jogar com arte, o ter a bola, o envolver o adversário, o buscar o gol carimbaram não apenas a vitória de um clube azul-grená ou de uma seleção vermelha, mas, sobretudo, representaram um triunfo dessa modalidade esportiva apaixonante denominada futebol. O futebol te ama, Espanha!

O jogo

Vinda de uma surpreendente vitória sobre a Alemanha na fase semifinal, a Itália parecia disposta - e com apenas dois dias de intervalo entre aquela partida e essa - a faturar o título continental. Cesare Prandelli armou a seleção com a mesma formação da partida anterior, contando com o retorno de Ignazio Abate para a lateral-direita. Vale lembrar que, na estréia na Euro 2012, a Itália enfrentou a Espanha com Daniele de Rossi na última linha de defesa, que na ocasião fora composta por Christian Maggio e Emanuele Giaccherini nos extremos e com Leonardo Bonucci e Giorgio Chiellini ao lado de De Rossi. Dessa vez, De Rossi atuou no meio-campo, mais próximo a Andrea Pirlo e mais distante de Gianluigi Buffon. Pirlo que, com um minuto, deu o primeiro chute do jogo, mandando à esquerda da meta uma tentativa de fora da área.

A Espanha montada por Vicente del Bosque para a final era rigorosamente igual à que enfrentou a Itália na partida inaugural nessa edição de Eurocopa, isto é, com Francesc Fàbregas escalado mais centralizado na linha de ataque, acompanhado pelas constantes aproximações de Andrés Iniesta (vindo da esquerda), David Silva (vindo da direita) e Xavi Hernández (vindo de trás). Mas a primeira finalização da equipe não foi de nenhum desses jogadores e nem aconteceu com bola rolando: aos cinco minutos, Sergio Ramos cobrou falta e mandou por cima da meta. O poderoso toque de bola espanhol apareceu com brilho no minuto seguinte: aos seis, Iniesta acionou Jordi Alba com enfiada de bola pela esquerda, o lateral recém-contratado pelo Barcelona cruzou e Chiellini cortou para impedir que a redonda encontrasse Silva, pronto para empurrar para a rede. A intervenção do italiano gerou escanteio que Xavi cobrou pelo lado direito e Ramos, de cabeça, deu a segunda finalização espanhola e pessoal na partida, mandando novamente por cima do travessão.

A imponência do estilo de jogo praticado pelos espanhóis e a identificação gerada entre os jogadores e o povo daquele país é algo tão extraordinário que, naquele início de partida, por volta dos oito minutos, com o placar ainda zerado, ouviam-se gritos de "olé" nas arquibancadas de Kiev, exaltando a filosofia de jogo praticada no épico Barça de Josep Guardiola e na épica Espanha de Del Bosque, dando seqüência ao trabalho de Luis Aragonés na seleção. Aos nove, após ótima trama de trocas de passe, uma tabela entre Cesc Fàbregas e Xavi terminou com uma finalização do camisa oito que, da meia-lua, mandou a bola perto do travessão.

Se é com o toque de bola que a Espanha faz o jogo acontecer, então é com o toque de bola que o placar precisava ser inaugurado na capital ucraniana. Aos treze minutos, Iniesta recebeu de Xavi e descolou enfiada de bola para Fàbregas. O camisa dez recebeu nas costas de Chiellini, foi à linha-de-fundo pelo lado direito e cruzou sob medida para que David Silva completasse para o gol, o que foi feito através de um cabeceio preciso rumo ao ângulo direito. 1a0 Espanha.
David Silva se antecipa a Leonardo Bonucci e cabeceia a bola ao ângulo direito, completando cruzamento de Francesc Fàbregas e abrindo o placar na final da Eurocopa 2012, em Kiev.

Sem os mesmos recursos do adversário, a Itália tentava o empate através de lances de bola parada. Aos quinze, Pirlo parou na barreira em cobrança de falta pelo lado esquerdo. Aos dezessete, ele cobrou escanteio pelo lado direito, Bonucci cabeceou na altura do primeiro poste e Ramos cortou de maneira providencial, impedindo que a bola chegasse em Chiellini. Pobre Chiellini. Nem tanto pela intervenção de Ramos em lance onde poderia marcar o gol de empate, mas principalmente pelo fato de, três minutos depois, uma contusão tê-lo tirado de campo aos vinte, para entrada de Federico Balzaretti. Realmente não é fácil jogar três dias depois de uma semifinal e mais difícil ainda é quando a final é diante da Espanha.

Mesmo encontrando tantas dificuldades, a Itália não poupava esforços na tentativa de superar um sistema defensivo que, em jogos eliminatórios, sofreu gol pela última vez no ano de 2006, gol esse de autoria de um certo Zinedine Yazid Zidane, na fase oitavas-de-final na Copa do Mundo onde a Itália seria tetracampeã. É isso mesmo: de lá para cá, a Espanha de Iker Casillas não foi vazada uma única vez nos duelos eliminatórios (3 jogos na Euro-2008, 4 na Copa-2010 e 3 na Euro-2012, incluindo essa final que aqui estamos analisando). Aos vinte e seis, Casillas deu tapa na bola após cruzamento vindo da esquerda de ataque italiano, impedindo cabeceio de Mario Balotelli - na seqüência, Alba participou bloqueando finalização de De Rossi. Aos vinte e oito, De Rossi recuperou a bola para a seleção italiana, Antonio Cassano recebeu na esquerda de Balotelli, fintou a marcação de Álvaro Arbeloa e chutou rasteiro entre as pernas de Gerard Piqué - Casillas, seguro como o habitual, defendeu sem dar rebote. Aos trinta e dois, Cassano recebeu de Pirlo e chutou firme, dessa vez à meia-altura, novamente parando em Casillas, que rebateu para a esquerda. Aos trinta e sete, Balotelli recebeu na esquerda de De Rossi, fez a tabela e chutou de fora, por cima.

Talvez os italianos não fizessem idéia de que aquela seqüência de oportunidades seria o melhor momento da equipe na partida e que outras chances para igualar o placar jamais voltariam a aparecer. Aos quarenta, a Espanha mostrou como é que se faz: Xavi recebeu de Alba no meio-campo, carregou a bola dando a cadência exata para que Alba se apresentasse para receber e, com um tempo perfeito de passe, enfiou rasteiro para deixar o melhor lateral-esquerdo na Euro-2012 cara-a-cara com o goleiro - Alba já dominou preparando para o chute e mandou rasteiro, no canto direito de Buffon. 2a0 Espanha.
 Após receber em velocidade ótimo passe de Xavi Hernández, Jordi Alba conclui a jogada chutando com o pé esquerdo, marcando o segundo gol da partida no canto direito.

Se marcar um gol na Espanha já era tarefa complicada, imagina agora a situação de uma seleção que se via em desvantagem de dois gols no placar. Aos quarenta e três, uma jogada envolvendo Balotelli, Cassano e Riccardo Montolivo terminou em chute forte dado pelo jogador da Fiorentina. Aliás, terminou em nova defesa de Casillas, que rebateu a finalização italiana. Naquele mesmo minuto, um drible desconcertante de Iniesta pra cima de Andrea Barzagli só não deixou o camisa seis na cara do gol porque o italiano cometeu falta, rendendo cartão amarelo aplicado pelo competente árbitro português Pedro Proença. O último remate antes do intervalo foi espanhol e aconteceu aos quarenta e cinco, quando Silva tentou de fora da área e Buffon encaixou, posicionado no centro da baliza.

Curiosamente, aquele primeiro tempo terminava com a posse de bola em 52% para a Itália (a última vez que a Espanha terminou uma partida com menos tempo de bola nos pés que o oponente havia sido na vitória por 1a0 sobre a Alemanha na final de Euro-2008, ou 60 partidas atrás). Esse percentual, porém, não explicitava uma realidade clara: no momento de construir a jogada mais aguda, a busca pela infiltração, a aproximação do gol, é notória a maior qualidade espanhola para trabalhar o lance e encontrar as alternativas. Um fato que também não aparece no dado sobre índice de aproveitamento de passes, que era praticamente igual (76% dos 247 espanhóis para 75% dos 249 italianos).

Mas o segundo tempo viria para "arrumar" essas estatísticas e consagrar a seleção que mais tem e que melhor usa a bola. No intervalo, Prandelli trocou Cassano por Antonio di Natale, colocando em campo aquele que é o único jogador a ter marcado gol na Espanha nessa edição de Eurocopa (a equipe não foi vazada em nenhum dos outros quatro jogos disputados). Logo com quarenta e seis segundos, quase brilhou a estrela de Di Natale: Abate cruzou da direita e o atacante da Udinese cabeceou por cima, perto do travessão, em lance que Casillas acompanhou com o braço esticado na direção da barra horizontal. A resposta espanhol não demorou sequer um minuto: Cesc trouxe para a direita e, da meia-lua, chutou uma bola que passou perto da trave direita. Cesc só faltava comer a bola: aos dois minutos, ele fez jogada individual pela direita, deixou Balzaretti caído na área e Buffon agiu para bloquear e impedir o terceiro gol espanhol. Aos três minutos, Xavi cruzou da direita em cobrança de falta, Ramos cabeceou e Bonucci cortou com o braço esquerdo, que estava aberto no momento da intervenção. Pênalti que Pedro Proença não apitou, apesar dos protestos.

O segundo tempo estava agitado, com chance de gol para os dois lados, penalidade máxima não assinalada e uma Espanha intensa, como se ignorasse a vantagem no placar. Aos cinco minutos, Di Natale recebeu de Pirlo, ficou cara-a-cara com o goleiro mas teve o chute defendido por Casillas - na seqüência, Di Natale tentou mandar por cima (não sei se para o gol ou se para Balotelli) e Casillas agarrou em definitivo. Aos oito, Iniesta serviu Fàbregas para deixá-lo na cara do goleiro, o que fatalmente teria acontecido se o camisa dez não tivesse, sem querer, batido com o calcanhar na bola, impedindo a si mesmo de ficar em condição de finalizar.

Aos onze minutos, Prandelli marcou um gol contra. E gol contra marcado por treinador pode ser mais grave do que os dos jogadores - às vezes, ele representa um dano maior do que o acréscimo unitário no placar. É que o italiano mexeu pela terceira e última vez trocando Montolivo por Thiago Motta, isto é, tirando de campo o jogador de meio-campo que mais se aproximava da dupla de atacante para pôr no gramado um meio-campista de contenção, sem a mesma visão de jogo daquele que saía. Poderia - e deveria - ter feito diferente, ainda mais por se tratar da última substituição por direito. Uma opção era tirar de campo Claudio Marchisio e, mesmo que colocasse Motta, poderia dessa forma dar maior liberdade para Pirlo sem perder Montolivo. Outra solução era colocar alguém com maior cacoete ofensivo, tais como Sebastian Giovinco, Alessandro Diamanti ou Antonio Nocerino - mesmo que fosse para, vá lá, tirar o Montolivo. Enfim, Prandelli ao trocar Montolivo por Motta parecia propôr retrair ainda mais uma equipe que era dominada territorialmente e que precisava de gols.

Aos doze minutos, Ramos cometeu falta em Di Natale e surgiu oportunidade de gol para a Itália via bola parada: Pirlo cruzou da direita, Casillas deu um tapa na bola e Balotelli chutou à esquerda. Aos treze, Del Bosque mexeu pela primeira vez na Espanha: saiu David Silva para a entrada de Pedro Rodríguez (naquele momento, a Espanha estava em campo com jogadores ou de Barcelona ou de Real Madrid). Para piorar ainda mais a situação italiana, Motta teve a infelicidade de, por volta dos quinze minutos, ter sentido uma fisgada que apontava para um estiramento muscular na parte posterior da coxa direita. Resultado: o brasileiro de nascimento deixou o campo na maca e a Itália não tinha o que fazer a não ser continuar a partida com um homem a menos. Era o anúncio da goleada.

Aos vinte e três minutos, Pedro recebeu na esquerda, cruzou e Balzaretti cortou. Aos vinte e oito, Cesc passou para Pedro, recebeu de volta na direita, cruzou e Abate cabeceou uma bola que tinha como endereço Iniesta. Na marca de trinta minutos, ecoou o som dos aplausos para Cesc Fàbregas, que deixava o campo e dava lugar a Fernando Torres, personagem saído do banco que passaria a protagonista nos minutos finais de partida.

Com trinta e um minutos, Ramos recebeu de Pedro na direita, fintou Balzaretti e caiu na área - Pedro Proença não caiu na dele, marcando apenas a saída de bola pela linha final. Aos trinta e três, uma troca de passes da Espanha deixou Pedro livre, só que foi flagrado impedimento do camisa sete, que mesmo assim concluiu com um chute cruzado que passou à direita. Aos trinta e seis, a posse de bola estava igualada percentualmente, o número de chutes igualado em onze e o de escanteios igualado em três. O que era bem diferente era a performance de cada seleção, com a Espanha colocando a Itália na roda e proporcionando espetáculo raro de se ver numa final de campeonato, que o diga numa final de Eurocopa.

Aos trinta e oito, saiu o terceiro gol: após uma tentativa de tabela errada da Itália, os espanhóis interceptaram a bola destinada a Pirlo e partiram em contra-ataque fulminante, que teve assistência de Xavi para Torres e conclusão de Torres para o canto esquerdo - Buffon até conseguiu tocar na bola, mas sem evitar que a redonda tomasse o rumo da rede. 3a0 Espanha.
 Oito minutos depois de entrar em campo, Fernando Torres faz história e se torna o primeiro jogador a marcar gol em duas finais seguidas de Eurocopa - em 2008, a Espanha venceu a Alemanha por 1a0 com gol dele. Prêmio "Chuteira de ouro" para "El Niño", por favor.

Aos quarenta e um, Iniesta, um dos melhores jogadores em campo e o melhor jogador no torneio, deixou o gramado sendo ovacionado pela massa, dando lugar para Juan Manuel Mata. Estavam em campo dois jogadores do atual campeão europeu Chelsea, e foi em jogada entre eles que saiu o quarto gol espanhol: aos quarenta e dois, Torres recebeu em posição legal (Balzaretti dava condição) e, com a parte externa do pé direito, deu passe como quem acariciava a bola com a chuteira, cabendo a Mata a finalização para estufar a rede mais uma vez. 4a0 Espanha.
 No minuto seguinte ao de sua entrada em campo, Juan Manuel Mata conclui para a rede jogada em que recebeu assistência de Fernando Torres - e foi exatamente com "El Niño", companheiro de Chelsea, que Mata foi comemorar o último gol na Eurocopa 2012.

Fernando Torres havia marcado seu terceiro gol na Euro-2012 e poderia ter se isolado no topo de lista de goleadores, igualando a marca de David Villa na Euro-2008. Mas preferiu servir um companheiro melhor posicionado. Aos quarenta e sete, El Niño voltou a participar em nova jogada de ataque, quando cruzou rasteiro da esquerda e Ramos completou de letra, parando em defesa de Buffon. Na marca de quarenta e oito, teve fim o espetáculo. Cabe ao blogueiro parabenizar essa seleção histórica, que faz gramado parecer palco e futebol parecer arte. Aliás, é isso o que ele é. Obrigado, Espanha, por lembrar-nos disso.

Campanha (tri)campeã

1a1 Itália (1ª rodada, grupo C)
4a0 Irlanda (2ª rodada, grupo C)
1a0 Croácia (3ª rodada, grupo C)
2a0 França (quartas-de-final)
0a0 Portugal, 4a2 nos pênaltis (semifinal)
4a0 Itália (final)

Tricampeã de Eurocopa (1964/2008/2012)
Tricampeã consecutiva entre Euro e Mundial (2008/2010/2012)
É a primeira vez que uma seleção ganha duas edições de Eurocopa consecutivamente.
Espanha para contar aos netos.

2 comentários:

  1. Soham,

    Você poderia colocar este post no FC Gols

    Abraços.

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  2. A melhor exibição da Fúria na Euro. E exatamente quando mais precisava. Do jeito que a coisa anda, em 2014 não teremos surpresas. Pelo menos até a final a Espanha deve chegar.

    Saudações!!!

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